Pesquisas têm mostrado o potencial do canabidiol (CBD) no tratamento de diferentes patologias e agora avançam na compreensão dos mecanismos de ação da substância. Resultados de estudo recém-publicado pela Progress in Neuro-Psychopharmacology & Biological Psychiatry sugerem que o CBD produz melhorias funcionais e moleculares no cérebro de animais, possivelmente induzindo neuroplasticidade (capacidade do cérebro de modificar e adaptar sua estrutura).
As pesquisas foram realizadas em modelo animal (ratos) com dor neuropática e comorbidades (depressão e perda cognitiva) relacionadas ao quadro e se concentraram em duas regiões do cérebro, uma área do hipocampo, essencial para a memória (CA1), e a região pré-límbica do neocórtex (com função afetiva e emocional na dor neuropática e na depressão).
Segundo o professor Renato Leonardo de Freitas, coordenador do Centro Multiusuário de Neuroeletrofisiologia (CMN) e do Laboratório de Neurociências de Dor & Emoções (LNDE) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e responsável pelo estudo, o estresse tem papel importante no desenvolvimento de transtornos depressivos com sugestiva participação do hipocampo.
A área CA1, informa o professor, é considerada a maior via de saída neural do hipocampo para o neocórtex e a conexão dessas regiões é muito estudada quanto ao funcionamento da memória, à execução de tarefas e também à dor crônica. Como a dor é uma das maiores causas de incapacitação no mundo, para a qual boa parte dos tratamentos disponíveis não é eficaz, de Freitas justifica que “a melhor compreensão dos mecanismos neurais e psicofarmacológicos” é importante na busca por novos medicamentos, como o canabidiol que vem sendo amplamente estudado no tratamento de diversas patologias, considerando seu amplo espectro de ação.
Para além da dor crônica, os pesquisadores também consideraram as comorbidades que normalmente a acompanham: depressão e déficits cognitivos. O modelo estudado foi de ratos com dor neuropática (nervo ciático lesionado). Num primeiro momento, investigaram “as conexões neurais entre o hipocampo dorsal (Hd) e a região pré-límbica (PrL) do córtex pré-frontal medial (CPFM)”, informa o professor de Freitas. O objetivo foi verificar como se dá a conexão e se ela está relacionada não somente com a dor crônica, de origem neuropática, mas também com as comorbidades relacionadas à depressão e prejuízos cognitivos.
Os resultados dessa etapa confirmaram a relação entre as duas regiões do cérebro: o produto usado como marcador celular (dextran biotin), previamente injetado no córtex pré-límbico, foi identificado também no CA1 do hipocampo. Verificaram também que, em presença da dor neuropática, houve aumento da expressão da proteína c-Fos (aparece após intensa ativação neuronal) e do número de astrócitos (se comunicam diretamente com os neurônios, reportando alterações do ambiente cerebral) nas duas regiões (CA1 e CPFM), acompanhada de redução da quantidade de neuroblastos (células que dão origem a novos neurônios) na CA1. Os animais também apresentaram “comportamentos crescentes do tipo depressivo com o comprometimento da memória”, acrescenta o pesquisador.
Ao comentar esses achados, de Freitas ensina que os astrócitos respondem a alterações, seja por lesão do sistema nervoso central, de um nervo periférico ou alguma condição pré-existente, o que pode “acarretar em aumento de substâncias pró-inflamatórias, por exemplo, prejudicando a comunicação com os neurônios”; alterações que, a longo prazo, contribuem para a cronificação da dor. Enquanto isso, o aumento da proteína c-Fos evidencia que essas áreas “estão superativadas, mesmo após 20 dias pós lesão do nervo ciático”. Já a redução de neuroblastos indica comprometimento da neurogênese adulta (nascimento, amadurecimento e integração de novos neurônios no cérebro), importante para o funcionamento adequado do sistema nervoso.
De Freitas conta que seu laboratório tem particular interesse pela região do córtex pré-frontal medial e já demonstrou em outros trabalhos que a ativação dessa área está “associada a amplificação e cronificação da dor, sendo também uma região que se comunica com outras áreas do sistema límbico das emoções, e assim, provocam as comorbidades já citadas”, acrescenta.
Após o tratamento dos animais com CBD em diferente dosagens, injetadas no CA1 do hipocampo, os pesquisadores verificaram que a concentração de 60 nmol de CBD foi capaz de diminuir as sensações de dor ao toque e ao frio e atenuar os comportamentos associados à depressão, com melhora do desempenho da memória.
Para Ana Carolina Medeiros e Priscila Medeiros, pesquisadoras da FMRP e integrantes da equipe de pesquisa, possivelmente o canabidiol utiliza a via de conexão CA1 do hipocampo com a área pré-límbica do córtex pré-frontal, induzindo neuroplasticidade. Os efeitos do CBD no CA1 dependem da ativação do córtex pré-límbico e recrutamento de receptores de serotonina (neurotransmissor relacionado à sensação de bem-estar) e de endocanabinoides (neurotransmissores receptores de canabinoides).
Essas alterações incluem ainda a reversão dos padrões da proteína c-Fos e do número de astrócitos, observada após uma única aplicação de CBD na CA1, e se traduzem numa melhor “funcionalidade da atividade celular e neuromolecular” nas regiões estudadas.
Com os resultados, a equipe de pesquisa afirma que o CBD representa “uma perspectiva terapêutica promissora no tratamento farmacológico da dor neuropática crônica e comorbidades associadas, como a depressão e comprometimento da memória”.
O estudo foi conduzido por pesquisadores da FMRP e da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP), ambas da USP, em conjunto com a Universidade da Campânia “Luigi Vanvitelli”, Itália.