Farmacêutico identifica compostos de animais marinhos e plantas que matam parasita de Chagas
O FARMACÊUTICO E PESQUISADOR DO INSTITUTO BUTANTAN ANDRÉ TEMPONE SE DEDICA AO ESTUDO DO TEMA HÁ 20 ANOS

As doenças tropicais negligenciadas (DTN) colocam em risco cerca de 1,7 bilhão de pessoas no mundo todos os anos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Uma delas é a doença de Chagas, endêmica em 21 países das Américas. Seu tratamento ainda é um desafio: há somente um fármaco disponível que, apesar de melhorar o quadro, não elimina o protozoário Trypanosoma cruzi, causador da doença. Mas a ciência brasileira está cada vez mais perto de encontrar novas estratégias de terapia – e a resposta pode estar na própria natureza.

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O farmacêutico e pesquisador do Instituto Butantan André Tempone se dedica ao estudo do tema há 20 anos e identificou compostos de animais marinhos e plantas que conseguem matar o parasita. O conhecimento deve ajudar a desenvolver medicamentos mais potentes no futuro.

Uma das moléculas mais promissoras foi encontrada no coral-sol (gênero Tubastraea), espécie invasora que vem se disseminando por toda a costa brasileira desde a década de 1980 e ameaçando os corais nativos. O animal pesquisado por André foi coletado em São Sebastião, litoral norte de São Paulo.

“Nós extraímos seus compostos químicos e fomos isolando um por um, até chegar naquele que possui atividade contra o protozoário”, conta André, que foi transferido recentemente do Instituto Adolfo Lutz – a organização, assim como o Instituto Butantan, é vinculada à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. O trabalho foi publicado em 2022 na revista ACS Omega.

O composto natural isolado foi testado em células e mostrou seletividade para o parasita, ou seja, mata somente as células infectadas e não afeta as saudáveis. Agora, em colaboração com a Universidade de Oxford, os cientistas trabalham na síntese da molécula (desenvolvimento em laboratório) para eliminar a necessidade de extraí-la do coral, e futuramente devem testá-la em animais.

“O oceano é uma farmácia”

André Tempone resume nessa ideia o foco de seu trabalho. “Essa frase, que ouvi em uma palestra quando ainda era estudante, me instigou a pesquisar a biodiversidade marinha. Coletamos corais, esponjas e bactérias de sedimento marinho para prospectar moléculas com potencial terapêutico. Agora, no Butantan, pretendo dar continuidade ao projeto e explorar compostos de venenos de animais”, afirma.

O pesquisador também faz investigações além do mar, e já descreveu, em colaboração com a Universidade Federal do ABC, uma molécula encontrada na planta brasileira canela-amarela (Nectandra barbellata) que eliminou o Trypanosoma cruzi em testes in vitro. Mas descobrir um composto natural é apenas parte do processo: é preciso torná-lo viável para circular adequadamente no organismo e surtir o efeito desejado.

“O grupo da Universidade de Oxford fez a síntese da substância e seus derivados, e já passamos de uma centena de derivados melhorados. A molécula natural circulava no sangue de animais por apenas três minutos; com as modificações, ela agora age por 21 horas”, destaca o cientista.

Problemas cardiológicos e sequelas graves

Transmitida pelo barbeiro infectado com o Trypanosoma cruzi, a doença de Chagas é silenciosa e costuma demorar para ser diagnosticada – mais de 90% dos pacientes levam anos para descobrir a infecção. O problema é que o tratamento funciona melhor no início da doença; em estágio avançado, eliminar o parasita fica muito mais difícil. Por isso, além do controle do vetor, a busca por novas terapias é fundamental.

Uma das sequelas mais graves, que acomete 30% dos infectados, é o aumento do coração e insuficiência cardíaca, decorrente de uma inflamação crônica no músculo do coração. Também podem ocorrer problemas digestivos, como dilatação do intestino e do esôfago. Essas complicações costumam levar anos para acontecer.

A fase inicial da infecção pode ser assintomática ou causar febre prolongada (mais de 7 dias), dor de cabeça, fraqueza intensa e inchaço no rosto e nas pernas. Em caso de picada do barbeiro, pode surgir uma lesão semelhante a um furúnculo, de acordo com o Ministério da Saúde.

Além da picada, o parasita também pode ser transmitido por alimentos contaminados, mais comumente caldo de cana e açaí in natura, que podem conter restos de fezes do animal. Gestantes infectadas podem transmitir ao bebê. 

O risco é maior para pessoas que residem em casas de estuque, taipa, sapê, pau a pique, madeira, entre outras estruturas que permitam a proliferação de insetos em frestas. O barbeiro também pode ser encontrado na mata, escondido em ninhos de pássaros, tocas de animais, cascas de tronco de árvores, montes de lenha e embaixo de pedras.

Doenças que merecem atenção

O dia 14 de abril é reconhecido como o Dia Mundial da Doença de Chagas pela OMS, que considera a doença “silenciosa e silenciada”, assim como outras enfermidades tropicais. São 30 a 40 mil novos casos no mundo todo ano, com 12 mil mortes. Embora predominem na América Latina e na África, os tripanossomas e outros agentes causadores de doenças tropicais devem ser uma preocupação de todos, ressalta o pesquisador André Tempone. Com as mudanças climáticas e os recordes de temperatura, esses organismos podem se adaptar a outras regiões do mundo. 

“Tem Chagas nos Estados Unidos, por exemplo: no Texas, há barbeiros infectados, embora existam poucos registros de casos no país. Hoje, há 7 milhões de pessoas com a doença no mundo inteiro, que também se infectam durante viagens”, conta.

As doenças tropicais em geral causam 200 mil mortes e custam bilhões de dólares por ano a países em desenvolvimento. São consideradas negligenciadas pela falta de recursos voltados a estudos de prevenção e tratamento e a políticas públicas de controle. O problema só passou a ganhar mais notoriedade em 2015, quando foi incluído nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU).

Segundo a OMS, até o final de 2023, 50 países eliminaram pelo menos uma doença tropical negligenciada, e a população de risco e que necessita de intervenções diminuiu 26% entre 2010 e 2022.

No Brasil, essas doenças ainda representam um grave desafio de saúde pública. Entre as principais enfermidades estão a hanseníase, chikungunya, malária, esquistossomose, oncocersose, tracoma, doença de Chagas, leishmaniose e raiva. A maior parte se concentra nas regiões Norte e Nordeste, de acordo com o Ministério da Saúde.

18/04/2024 13:36
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